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27 de setembro de 2010

I



_ é engraçado pensar que durante um tempo eu achava que isso não era pra mim
_ hambuguer de picanha e vanilla coke?
_ e chilli fries e um relacionamento saudável.
_ estranho quando você diz essas coisas. Por que não seria?
_ sei lá. Costumava achar que felicidade assim era coisa de quem tinha uma vida normal, família tipo comercial de margarina
_ ah é "vida normal" tem tudo a ver com aqueles cafés da manhã das propagandas de claybon da sua infância
_ levei anos pra entender que não. Só na adolescência que fui conhecer mais gente sem pai ou mãe, filhos de pais separados. Na escola boa parte das crianças parecia vir de famílias organizadinhas e quase todo mundo era católico, eu me sentia fora do esquema
_ porque não ia ninguém na sua festinha de dia dos pais?
_ sempre ia alguém. O vô ou um dos meus tios.
_então você nem era tão diferente assim
_ embora mamãe seja ótima e o familhão tivesse uma preocupação em compensar esse vazio, eu tinha a sensação de ter perdido alguma coisa que jamais saberia o que era.
_ como assim?
_ eu não me lembrava dele direito dele, não lembrava da sensação como é de ter um pai – eu tinha vivido aquilo e não sabia mais como era. Perdi.
_ mas até aí, muita gente tem os pais vivos e nem por isso a vida deles é mais fácil ou eles se sentem mais seguros por isso. Tem famílias que não facilitam a vida de uma pessoa em nada.
_ sei disso. O que estou falando são de coisas, às vezes bem simples, que nos acontecem, e causam uma impressão tão forte que aquilo influencia sua personalidade, sua visão de mundo durante anos sem a pessoa dar conta
_ qual era a ligação entre ter perdido seu pai e não conseguir manter um “relacionamento saudável” ?
_ a convicção de que as coisas não duram, especialmente felicidade.
_ entendo. Só que mesmo não durando, não vale a pena deixar de ser feliz por causa disso.
_ só conseguia entender isso na teoria. Organizei boa parte da minha vida em torno de uma idéia de independência, autossuficiêcia, porque sabia que as pessoas passam, vão embora, morrem e eu não queria conviver com a ideia da alma despedaçando a cada vez que perdesse alguém que amasse
_ e as pessoas que você abandona? as que deixou ir embora?
_ eu pensava essas coisas antes de saber que um dia abandonaria alguém ou deixaria uma pessoa sair da minha vida porque me convinha
_ seu lado precoce de se preocupar com essas coisas levava também uma bela dose de pretensão, né
_ faz parte do meu charme
_ irresistível. Mas essa lógica de ‘não me apegar para não sofrer’ era bem simplista
_ e como o tempo comprovou, inútil. Me apeguei sem querer várias vezes, com o agravante de me sabotar embaçando a felicidade e reduzindo maravilhamento de encontrar de quem se possa gostar
_ supereguinho escroto esse seu, hein?
_ alimentado por anos e anos de educação bíblica dominical da igreja batista. tome velho testamento
_ por isso hoje em dia você é herege desse jeito
_ isso só aumenta o charme.
_ contratacando brutalmente a virtude da modéstia.
_ exatamente.
_ é curioso, porque você conta que sua infância foi feliz, mas às vezes você faz comentários fortes sobre essa sensação de perda, de deslocamento em relação aos outros
_ era tudo misturado: a noção de que eu não era como os outros me dava a impressão de que a minha felicidade era diferente também
_ em termos de melhor ou pior?
_ não. era diferente mesmo. às vezes eu me achava mais feliz porque tinha consciência de que ia passar: o natal, as festas de aniversário, minha infância. Certas ocasiões queria mais que infância acabasse logo para eu poder tomar conta da minha vida. Eu achava que poderia fazer o que bem quisesse quando crescesse.
_ pensei que você ainda achasse isso
_ hahahahaha, tá bom, valeu. Pra isso preciso querer menos coisas – estabelecer o mínimo de prioridades
_ bom, o fato é que você tinha medo: de se afeiçoar, de perder quem era alvo desse afeto, de ser feliz e deixar de ser
_ o que era praticamente medo de estar viva. Já dizia GH: um mundo todo vivo tem a força de um inferno.
_ não vem de citação barata
_ em se tratando de GH, barata é adequadíssimo para a citação, hahaha
_ para de fugir do assunto. quando foi que você resolveu encarar o medo?
_ não sei exatamente, mas tem a ver com a noite em que minha avó morreu
_ cê percebeu que se esconder das dificuldades da vida tornariam a coisa toda sem sal?
_ isso aprendi lendo ‘cartas a um jovem poeta’. Naquele dia me senti sozinha como nunca antes. Sozinha de um jeito triste, porque sabia era capaz de muito amor. Eu tinha segurando uma barra do caralho pra ajudar minha mãe por amor ela. Havia tanto afeto nas pequenas coisas: tinha sido dura, forte, prática o quanto pude, até o final, porque era o meu jeito de me importar com as pessoas – ainda sou assim. O fato é que naquela noite caiu a ficha de que não adiantava juntar uma série de relíquias sentimentais em silêncio, só para mim. Não queria estar sozinha daquele jeito desolado e só podia resolver isso baixando as defesas ao poucos, desmontando as sabotagens
_ de por causa de uma perda você começou a desconstruir ideias que passou a carregar por causa de outra quase vinte anos antes
_ no mínimo irônico, né
_ só espero que eu não tenha que morrer pra você aprender alguma coisa
_ pode parando de graça. Você tem é que viver bastante pra continuar servindo de cobaia para as minhas tentativas de amadurecimento sentimental
_ah, sim, claro. Tem mais alguma coisa que eu possa fazer pelo seu bem estar?
_ hum... tem. pede outra vanilla coke?

26 de setembro de 2010

do bem-querer e outras inadequações



vejo um relacionamento como um fluxo de negociações, e você me pergunta se não é uma perspectiva muito crua, como se buscar um acordo sempre envolvesse confronto. Resolver onde se vai jantar reúne expectativas e apetites diferentes que podem se acertar de primeira na opção ou se ajustarem em torno de uma outra escolha.

quanto mais fáceis os acertos, mais transparentes as barganhas, mal se notam, mas elas estão lá – em toda interação social – o problema é que a paixão exacerba a coisa toda: uma discordância ganha proporções absurdas. É mais fácil ceder uma desimportância a um colega do que relativizar um ponto de vista com um amante.

a solteirice não expunha o percurso das minhas escolhas. Decidir não vinha pegado a mais alguém e recusar ou ignorar era simples – a solidão reforça egoísmos necessários para a pessoa se manter fiel a sua construção de ser, mas que interferem numa situação a dois: ainda me pergunto como resolveria situações sozinha, só percebo ser dura e exigente como costumo ser comigo depois da aspereza e ter que ser paciente me incomoda.

estar só tornou-se hábito disfarçado pela impressão de liberdade – defesa contra a vulnerabilidade de toda uma capacidade de afeto dispensada entre escritos, correspondências, amizades, amores familiares. O sentir se dispersa, mas não aplaca o desejo – no fim ainda que a cabeça se organize, o corpo anseia pelo outro.

ainda que tivesse a disposição para a dinâmica da noite – habilidades como proibir arrependimentos, cultivar desimportâncias, respeitar desprezos, esquecer e desaparecer – a repetição de lugares, músicas, bebidas, cigarros, silêncios e conversas superficiais só expõe a incomunicabilidade dos sozinhos pairando na madrugada esperando nada ou ansiando por algo que nem sabe-se o que é

eu só sabia o que não queria

e temia delinear a face do desejo e limitar ainda mais possibilidades raras de encontro. Medo de me apegar a um modo de ser inventado e esquecer como desaprende-lo. Medo de me flagrar em fuga de intimidades, calmarias e qualquer espécie de permanência.
minha lição até agora foi tirar da covardia o impulso necessário para deixar o terreno conhecido quando me apareceu este homem possível. Abandonar uma postura solidária deu um novo peso à minha solidão. Troquei de inquietações, reorganizei prioridades, distribuição das energias, me permiti outra ordem de delicadezas.

estar junto impõe inúmeros pequenos desafios, exercícios de empatia, olhares e palavras cuidadosas para os quais nem sempre estou pronta ou disposta. E se algo me redime é consciência da minha ignorância. Eu não sei como, meu amor, eu improviso.

19 de setembro de 2010

depois do fim do fim

Ele se me pergunta por que ainda atendo seus telefonemas e minhas explicações nunca dão a extensão da coisa. O fato é que não gosto de remexer essa história e recontá-la pelo lado de dentro. Sem cronologias causefeitos detalhes – eles importam, mas não ajudam a compreender as impressões, se bem que um motivo pra ‘alô - e aí, como você tá?’ e o resto e o superficial seja a inofensividade da conversa que vem do nada para lugar nenhum.

Atendo porque não: não há nada íntimo a ser dito, não há mágoa que me impeça a educação, não há saudade que torne o diálogo memorável e/ou perturbador.

Um ano atrás um pouco mais, talvez eu ainda especulasse o motivo do seu gesto em direção ao passado, um pretérito distante em que os traços que mantinham o entendimento se tornaram escassos.

Há dias em que esse vazio evocado por uma tentativa de conversa me soa a realização da profecia de que eu saberia muito bem viver sem você. Nós sabíamos, mas não o quanto.

Me fica uma tristeza de seus telefonemas espaçados hesitantes. Mostram como tempo e escolhas desfizeram algo em que acreditei. Devia ser inocência crer que acabado o envolvimento e a mágoa, poderíamos continuar conversando – talvez ignorasse que o afeto sustentava o assunto ou achava que a troca nos trazia alguma lucidez porque o conhecimento dos erros antigos poderia clarear novos caminhos.

Mas o verbo evapora e os fatos revelam a superficialidade do discurso. Monólogos que não buscam o outro senão como ouvido. E ouço, ainda, porque não me convém revirar nenhuma antiguidade para justificar o corte abrupto desse arremedo de assunto. Deixo a coisa correr sem sentido nem memória, porque qualquer atitude de te rejeitar, dizer que você não faz parte da vida que levo, recusar seus telefonemas ou te manter como segredo para o meu amor, evoca suas atitudes que me doeram.

É possível que a única razão de não te banir seja orgulho: a serenidade de não te guardar como algo escuso que precise escolher ou ignorar, posição de tudo-ou-nada na qual você me pôs porque eu me opunha ao que você abraçava ao me deixar para trás. Orgulho por saber que resolvida nossa história não me caiba o que recusar: e mesmo vazios esses esboços de diálogo eu os tenho. Por preferir não te expulsar de onde uma pessoa se considera acolhida, para que você não tenha a dor que conheci. Não se ache no direito de se sentir mártir, em meio a ofensa da negação e do silêncio quando hoje traz apenas boas intenções de me desejar felicidade – quando há muito você e minha felicidade não tem mais qualquer espécie de ligação.