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18 de novembro de 2010

da ponte, a travessia



Tinha feito malas, separado da primeira necessidade aos pequenos luxos, livros começados & a espera, baralhos de tarô, diários, brincos de prata há tempo sem uso. Objetos revestidos de uma cor sentimental: fragmentos até ali. Fotografias, postais e a percepção de que além do que ficaria, havia tanto a jogar fora. Rastros adolescentes confundidos com a memória, lastro fácil de juntar quando a vida tem mais tons de um vir a ser: gente grande, mulher, jornalista, outras nuances. Mas quando vem, então, o que importa é quase portátil.


Por mais esperado o instante, fechar a porta de casa trouxe um arrepio, lágrimas ligeiras atrás dos óculos escuros. Ir embora não cheirava a abandono, era um novo chegar. A vertigem do desconhecido revirava o turbilhão dos últimos dias – preparativos, comemorações, amigos, a família. O amor no recado em batom no espelho, nas conversas entrecortadas, sorrisos, abraços demorados, no olhar silencioso do cachorro acompanhando a saída sem lamento nem festa, no livro sobre a cabeceira da Mãe.


**


Chegar é uma casa onde me aninho aos poucos. A acolhida do amor contrasta a imponência da metrópole e seus excessos concretos automóveis distâncias multidões. As pessoas me dizem coragem e, no entanto, essa mudança acalentada chega repentina e natural – a exigir força mais pelo desafio do novo trabalho, aprendizado e a construção de novas referências. Em casa, os cuidados se complementam, as carícias se embalam e dias cinzentos e a garoa são traços a apreender na primavera paulistana.

27 de setembro de 2010

I



_ é engraçado pensar que durante um tempo eu achava que isso não era pra mim
_ hambuguer de picanha e vanilla coke?
_ e chilli fries e um relacionamento saudável.
_ estranho quando você diz essas coisas. Por que não seria?
_ sei lá. Costumava achar que felicidade assim era coisa de quem tinha uma vida normal, família tipo comercial de margarina
_ ah é "vida normal" tem tudo a ver com aqueles cafés da manhã das propagandas de claybon da sua infância
_ levei anos pra entender que não. Só na adolescência que fui conhecer mais gente sem pai ou mãe, filhos de pais separados. Na escola boa parte das crianças parecia vir de famílias organizadinhas e quase todo mundo era católico, eu me sentia fora do esquema
_ porque não ia ninguém na sua festinha de dia dos pais?
_ sempre ia alguém. O vô ou um dos meus tios.
_então você nem era tão diferente assim
_ embora mamãe seja ótima e o familhão tivesse uma preocupação em compensar esse vazio, eu tinha a sensação de ter perdido alguma coisa que jamais saberia o que era.
_ como assim?
_ eu não me lembrava dele direito dele, não lembrava da sensação como é de ter um pai – eu tinha vivido aquilo e não sabia mais como era. Perdi.
_ mas até aí, muita gente tem os pais vivos e nem por isso a vida deles é mais fácil ou eles se sentem mais seguros por isso. Tem famílias que não facilitam a vida de uma pessoa em nada.
_ sei disso. O que estou falando são de coisas, às vezes bem simples, que nos acontecem, e causam uma impressão tão forte que aquilo influencia sua personalidade, sua visão de mundo durante anos sem a pessoa dar conta
_ qual era a ligação entre ter perdido seu pai e não conseguir manter um “relacionamento saudável” ?
_ a convicção de que as coisas não duram, especialmente felicidade.
_ entendo. Só que mesmo não durando, não vale a pena deixar de ser feliz por causa disso.
_ só conseguia entender isso na teoria. Organizei boa parte da minha vida em torno de uma idéia de independência, autossuficiêcia, porque sabia que as pessoas passam, vão embora, morrem e eu não queria conviver com a ideia da alma despedaçando a cada vez que perdesse alguém que amasse
_ e as pessoas que você abandona? as que deixou ir embora?
_ eu pensava essas coisas antes de saber que um dia abandonaria alguém ou deixaria uma pessoa sair da minha vida porque me convinha
_ seu lado precoce de se preocupar com essas coisas levava também uma bela dose de pretensão, né
_ faz parte do meu charme
_ irresistível. Mas essa lógica de ‘não me apegar para não sofrer’ era bem simplista
_ e como o tempo comprovou, inútil. Me apeguei sem querer várias vezes, com o agravante de me sabotar embaçando a felicidade e reduzindo maravilhamento de encontrar de quem se possa gostar
_ supereguinho escroto esse seu, hein?
_ alimentado por anos e anos de educação bíblica dominical da igreja batista. tome velho testamento
_ por isso hoje em dia você é herege desse jeito
_ isso só aumenta o charme.
_ contratacando brutalmente a virtude da modéstia.
_ exatamente.
_ é curioso, porque você conta que sua infância foi feliz, mas às vezes você faz comentários fortes sobre essa sensação de perda, de deslocamento em relação aos outros
_ era tudo misturado: a noção de que eu não era como os outros me dava a impressão de que a minha felicidade era diferente também
_ em termos de melhor ou pior?
_ não. era diferente mesmo. às vezes eu me achava mais feliz porque tinha consciência de que ia passar: o natal, as festas de aniversário, minha infância. Certas ocasiões queria mais que infância acabasse logo para eu poder tomar conta da minha vida. Eu achava que poderia fazer o que bem quisesse quando crescesse.
_ pensei que você ainda achasse isso
_ hahahahaha, tá bom, valeu. Pra isso preciso querer menos coisas – estabelecer o mínimo de prioridades
_ bom, o fato é que você tinha medo: de se afeiçoar, de perder quem era alvo desse afeto, de ser feliz e deixar de ser
_ o que era praticamente medo de estar viva. Já dizia GH: um mundo todo vivo tem a força de um inferno.
_ não vem de citação barata
_ em se tratando de GH, barata é adequadíssimo para a citação, hahaha
_ para de fugir do assunto. quando foi que você resolveu encarar o medo?
_ não sei exatamente, mas tem a ver com a noite em que minha avó morreu
_ cê percebeu que se esconder das dificuldades da vida tornariam a coisa toda sem sal?
_ isso aprendi lendo ‘cartas a um jovem poeta’. Naquele dia me senti sozinha como nunca antes. Sozinha de um jeito triste, porque sabia era capaz de muito amor. Eu tinha segurando uma barra do caralho pra ajudar minha mãe por amor ela. Havia tanto afeto nas pequenas coisas: tinha sido dura, forte, prática o quanto pude, até o final, porque era o meu jeito de me importar com as pessoas – ainda sou assim. O fato é que naquela noite caiu a ficha de que não adiantava juntar uma série de relíquias sentimentais em silêncio, só para mim. Não queria estar sozinha daquele jeito desolado e só podia resolver isso baixando as defesas ao poucos, desmontando as sabotagens
_ de por causa de uma perda você começou a desconstruir ideias que passou a carregar por causa de outra quase vinte anos antes
_ no mínimo irônico, né
_ só espero que eu não tenha que morrer pra você aprender alguma coisa
_ pode parando de graça. Você tem é que viver bastante pra continuar servindo de cobaia para as minhas tentativas de amadurecimento sentimental
_ah, sim, claro. Tem mais alguma coisa que eu possa fazer pelo seu bem estar?
_ hum... tem. pede outra vanilla coke?

26 de setembro de 2010

do bem-querer e outras inadequações



vejo um relacionamento como um fluxo de negociações, e você me pergunta se não é uma perspectiva muito crua, como se buscar um acordo sempre envolvesse confronto. Resolver onde se vai jantar reúne expectativas e apetites diferentes que podem se acertar de primeira na opção ou se ajustarem em torno de uma outra escolha.

quanto mais fáceis os acertos, mais transparentes as barganhas, mal se notam, mas elas estão lá – em toda interação social – o problema é que a paixão exacerba a coisa toda: uma discordância ganha proporções absurdas. É mais fácil ceder uma desimportância a um colega do que relativizar um ponto de vista com um amante.

a solteirice não expunha o percurso das minhas escolhas. Decidir não vinha pegado a mais alguém e recusar ou ignorar era simples – a solidão reforça egoísmos necessários para a pessoa se manter fiel a sua construção de ser, mas que interferem numa situação a dois: ainda me pergunto como resolveria situações sozinha, só percebo ser dura e exigente como costumo ser comigo depois da aspereza e ter que ser paciente me incomoda.

estar só tornou-se hábito disfarçado pela impressão de liberdade – defesa contra a vulnerabilidade de toda uma capacidade de afeto dispensada entre escritos, correspondências, amizades, amores familiares. O sentir se dispersa, mas não aplaca o desejo – no fim ainda que a cabeça se organize, o corpo anseia pelo outro.

ainda que tivesse a disposição para a dinâmica da noite – habilidades como proibir arrependimentos, cultivar desimportâncias, respeitar desprezos, esquecer e desaparecer – a repetição de lugares, músicas, bebidas, cigarros, silêncios e conversas superficiais só expõe a incomunicabilidade dos sozinhos pairando na madrugada esperando nada ou ansiando por algo que nem sabe-se o que é

eu só sabia o que não queria

e temia delinear a face do desejo e limitar ainda mais possibilidades raras de encontro. Medo de me apegar a um modo de ser inventado e esquecer como desaprende-lo. Medo de me flagrar em fuga de intimidades, calmarias e qualquer espécie de permanência.
minha lição até agora foi tirar da covardia o impulso necessário para deixar o terreno conhecido quando me apareceu este homem possível. Abandonar uma postura solidária deu um novo peso à minha solidão. Troquei de inquietações, reorganizei prioridades, distribuição das energias, me permiti outra ordem de delicadezas.

estar junto impõe inúmeros pequenos desafios, exercícios de empatia, olhares e palavras cuidadosas para os quais nem sempre estou pronta ou disposta. E se algo me redime é consciência da minha ignorância. Eu não sei como, meu amor, eu improviso.

19 de setembro de 2010

depois do fim do fim

Ele se me pergunta por que ainda atendo seus telefonemas e minhas explicações nunca dão a extensão da coisa. O fato é que não gosto de remexer essa história e recontá-la pelo lado de dentro. Sem cronologias causefeitos detalhes – eles importam, mas não ajudam a compreender as impressões, se bem que um motivo pra ‘alô - e aí, como você tá?’ e o resto e o superficial seja a inofensividade da conversa que vem do nada para lugar nenhum.

Atendo porque não: não há nada íntimo a ser dito, não há mágoa que me impeça a educação, não há saudade que torne o diálogo memorável e/ou perturbador.

Um ano atrás um pouco mais, talvez eu ainda especulasse o motivo do seu gesto em direção ao passado, um pretérito distante em que os traços que mantinham o entendimento se tornaram escassos.

Há dias em que esse vazio evocado por uma tentativa de conversa me soa a realização da profecia de que eu saberia muito bem viver sem você. Nós sabíamos, mas não o quanto.

Me fica uma tristeza de seus telefonemas espaçados hesitantes. Mostram como tempo e escolhas desfizeram algo em que acreditei. Devia ser inocência crer que acabado o envolvimento e a mágoa, poderíamos continuar conversando – talvez ignorasse que o afeto sustentava o assunto ou achava que a troca nos trazia alguma lucidez porque o conhecimento dos erros antigos poderia clarear novos caminhos.

Mas o verbo evapora e os fatos revelam a superficialidade do discurso. Monólogos que não buscam o outro senão como ouvido. E ouço, ainda, porque não me convém revirar nenhuma antiguidade para justificar o corte abrupto desse arremedo de assunto. Deixo a coisa correr sem sentido nem memória, porque qualquer atitude de te rejeitar, dizer que você não faz parte da vida que levo, recusar seus telefonemas ou te manter como segredo para o meu amor, evoca suas atitudes que me doeram.

É possível que a única razão de não te banir seja orgulho: a serenidade de não te guardar como algo escuso que precise escolher ou ignorar, posição de tudo-ou-nada na qual você me pôs porque eu me opunha ao que você abraçava ao me deixar para trás. Orgulho por saber que resolvida nossa história não me caiba o que recusar: e mesmo vazios esses esboços de diálogo eu os tenho. Por preferir não te expulsar de onde uma pessoa se considera acolhida, para que você não tenha a dor que conheci. Não se ache no direito de se sentir mártir, em meio a ofensa da negação e do silêncio quando hoje traz apenas boas intenções de me desejar felicidade – quando há muito você e minha felicidade não tem mais qualquer espécie de ligação.

4 de agosto de 2010

Amaranta

não quero que você tire forças de onde não tem. mas precisamos que você tenha um mínimo de coragem. o que podemos fazer tem limite: podemos te visitar, telefonar, acompanhar suas consultas ao médico, marcar exames, fazer curativos, pesquisar sobre medicina alternativa e dietas que amenizem os enjôos. detalhes, delicadezas.

para que se sinta amparada, sinta que te amamos e não queremos perder você, que se por um lado se sente só, somos um bando de impotentes – uns desorientados, outros mais atentos – assustados pela evidência da fragilidade da vida e querendo que você tente. temos medo, mas só podemos chegar com você até a sessão, cuidar de você na volta, inventar distrações (inúteis, porque o seu abatimento é tão fundo que superficialidade das nossas palavras é óbvia, seu olhar absorto as reflete desatento)

antes houvesse menos pudor e você chorasse logo esse medo e falasse de morte – ninguém pensa na própria até que lhe venha a perspectiva – e por mais que você repita há anos como envelhecer é terrível, a vaidade apanha, as limitações são injustas, as dores pelo corpo e talvez fosse melhor acabar logo com tudo isso posto que a tendência é piorar, sempre há o pavor por trás das palavras, e me pergunto se mais pela perspectiva de ficar abatida, perder os cabelos, emagrecer, precisar de calmantes, quando o esforço em apegar-se à vida encontrará uma impossibilidade inevitável. a luta parece vencida de antemão – é mais medo do caminho do que do desfecho, até porque nada está definido e até chegar ao fim

é uma questão de tempo

mas este tempo serviria para você se permitir não ser tão forte o tempo todo, porque a firmeza necessária a sustentar essa postura dificulta, meu deus, é certo você não quer que sintam pena, com razão, mas o excesso de dignidade intimida uma aproximação, um afeto, que é do que você precisa agora e nem eu que estive sempre perto tenho sabido como me achegar e lembrá-la de que estou aqui, tenho rezado por você, tenho desejado que a tristeza una as pessoas em torno de um pouco de humildade (isso é querer demais, sei)

e são muitas as possibilidades: de cura, de uma nova postura diante das coisas, de pequenas felicidades em meio a essa dor que não deixará que a vida seja como antes e no entanto, a diferença não é sentença de fatalidade e depende da forma como você enfrenta a doença, como nós nos organizamos diante da responsabilidade de cuidar de quem durante anos se ocupou de cuidar de nós mesmo quando não achávamos mais necessário

26 de julho de 2010

Bs As II



una mirada desde la alcantarilla
puede ser un visión del mundo

la rebelion consiste en mirar una rosa
hasta pulverizarse los ojos

Alejandra Pizarnik,
Árbol de Diana


teu céu nublado claro quase branco, tus calles me esperando a desvendá-las a pé, as largas avenidas, os cafés de esquina – a filosofia nas bancas de jornal, entre whiskys, vinho e fumo nas calçadas. Uma elegância inexplicável, recendendo a orgulho, um tom de distinção – a gentileza mesmo com os nem sempre bem-vindos, a beleza simples no desfilar de seus casacos, vaqueros, cashemeres, cachecóis. Um calor gentil dos que recebem bem aos hermanos, encantados com a mistura da arquitetura, a história inesquecida no testemunho de teus prédios nas palavras de ordem nas paredes, fotografias e postais dos personagens e heróis de tua trajetória. Memórias.

guardarei o sabor de teu chocolate quente e medialunas, tanta música, do pop mais batido nas rádios cariocas que há anos não ouço ao eletrotango pelas ruas de San Telmo – até encontrar los criollos orgullosos y la milonga em la calle. Trouxe comigo um pouco de tua poesiaa me ensinar um ritmo – Julio, queridíssimo Cronópio, para reacender essa paixão antiga.

me voy com o pés doloridos e alegres. há anos te desejava pela tangente sem pressa de chegar por não saber quando, enfim, tragaria teus gostos cores cheiros a talhar atrás dos olhos este afeto delicado. Tu me acolheste y correspondeste a meu peito aberto com teus caminhos planos, os sorrisos de teus habitantes, a calma no porto, el piropo de los tipos.

foi intenso e breve o nosso encontro. E creia, que mesmo em teu desencanto crítico estampado entre as bandeiras del bicentenário, nada se perde do carinho que antes de dedicava – volto – e não trarei o encantamento tolo de quem se aproxima para encontrar no outro um traço que fale ao seu desejo, mas venho sabida de algumas belezas a te procurar ainda mais em teu detalhes.

24 de julho de 2010

notas sobre um jantar em família



O silêncio constrange. Preferia que você fizesse piada, porque não vai admitir o medo. É claro, eu também tenho – mas não existe a menor possibilidade de deixar que isso me pare agora. Olha bem pra mim. Por acaso eu fiz alguma merda na minha vida? Uma loucura irremediável? então. E tenho sobrevivido a tanta coisa enquanto vocês se reúnem e bebem e conversam e se comportam como se nada estivesse acontecendo, preocupados se a cadeira é confortável e fazendo planos de mudanças e viagens e falando da bolsa.

Mas estou misturando as coisas. Se bem que no fim as coisas não serão mais como antes. Nem pra mim, nem pra ela. Porque embora eu tenha começado porque sinto essa censura silenciosa, a falta de assunto como reprovação. É bem parecida essa coisa. Não falaremos que ela está doente, como se isso pudesse espantar o medo dela, o medo que temos por ela.

Não falar sobre o assunto faz com que ela se sinta só – claro que uma pessoa com um tumor crescendo por dentro se sentirá extremamente solitária, mas é preciso compartilhar algo, encontrar um conforto, um ‘não posso fazer muito, mas estou aqui’. E esse silêncio não é cúmplice, é uma forma de isolar o que vai contra a normalidade. Seja numa discordância ou na perturbação da descoberta da fragilidade da vida da própria mãe.

Antes você me dissesse que não sabe lidar com a imprevisibilidade das coisas, em vez dessa defensiva, o olhar esquivo para a forma como ela se move tentando evitar que notem a diferença após a cirurgia.

Você não quer ouvir, constatar a passagem do tempo, a inevitabilidade da morte. E justo você, quem soube dar amor das formas mais óbvias e veementes, quem não teria o que lamentar por omissões e arrependimentos. Não diga, chore. Desespere logo o que te parece a desagregação da família, a beirada do desconhecido. Se aproxime dela sem razão nem medo, para que ela possa se sentir ao menos amparada. Não cometa a estupidez de no futuro lamentar o que não falou enquanto havia tempo.

E quanto a mim, sei lá. Talvez um dia você venha de sarcasminho – ou guarde pra si toda essa merda ‘olha lá, estou avisando’. De certa forma é bom pensar que o seu silêncio é constatação de que nenhuma palavra mudaria o decidido, mas ainda queria te ouvir. Queria esse precedente. Só pra responder. Mas, ah, sim, eu posso esperar.

22 de julho de 2010

vambora

vezenquando essa sensação de que vida está ficando pequena pro que você quer ser. não que você queira muita coisa. e se quiser, é direito seu. ninguém vai arder insone de desejo ou se afundar quando suas expectativas não se cumprirem, como você vai. seus desejos já foram mais caros, mais longe, recendendo a pretensão de quem se pensa resolvendo quase tudo sozinha, deixando o importante. gentes e a si mesma inclusive.

parte da dinâmica é se ultrapassar, por isso seu agora tem um travo de ‘e depois?’ apesar de concentrar na lição de viver o presente - afinal não há mais nada – acredita-se que o agora se desdobra noutra coisa e a vontade aponta. a próxima, por favor

parece que tudo o que você queria ser é adulta. isso: ter suas responsabilidades, sua grana, decidir por sua vida dentro de algumas opções, cuidar de si e todo dia lembrar de não se sentir mal pelo fato de que eles não entendem que você caiu fora do esquema boa moça se fazendo de virgem aos 25 porque solteira - ok, quem precisava, entendeu. irritante é a conversa fiada de sobra que não vai mudar nada.

e viva o velho mantra: ‘ninguém lava minhas calcinhas’. tem horas em que só repetindo muito. quando surge um pra cagar moral censurando sua felicidade. sempre há. E não tem o que explicar porque no fim o amor e preocupação justificam a reticência, mas só o amor vale alguma coisa, nem por isso impede que mudo gire e a vida siga.

é preciso inventar outro limite. tá na hora de dar a cara a tapa, de parar de disfarçar a mulherice nessa farsinha familiar em que te tratam como pós adolescente, inocente, tolinha. a voz da experiência que interessa vem de dentro, quebrar a cara também é necessário. encontrar um jeito próprio de organizar o território. o que vem é hora do passo e você sente o desejo silencioso se concentrando, foco.

você mal pode esperar – a porrada contra essa pequenice, pra desfazer a coisa esgarçada se arrastado há anos por questões de grana. finalmente parar de fazer contas e fluir em direção risco. e melhor, numa direção diferente do plano inicial, sem se ultrapassar e levando em conta o que importa: a gente e o sentir.

20 de julho de 2010

entre as pontas



faz parte da minha felicidade chorar em aviões. Ninguém associa felicidade à moça de óculos escuros com o rosto voltado para janela enquanto as lágrimas escorrem, mas é isso mesmo - entre uma insipiração mais funda pra evitar um soluço, agradeço: aos deuses, à vida, ao acaso. não é qualquer coisa que provoca transbordamentos despudorados em transportes coletivos

o que me dói é a ponte. Impalpável e silenciosa, a distender o amor - que embora o bastante para resistir às raízes em terras tão diferentes, se recente de expandir-se, recolher-se no longe-perto

é feliz sentir minha vida se espalhar, apesar de uma tristeza me ver onde me cabe cada vez menos estar. se misturam o desejo de independência e espaço, o para enfim deixar ninho e se achegar mais pro seu lado onde preciso pisar firme e mansa, sem me deixar atropelar por tanta informação, a vertigem da cidade, o que você me traz de novo e o que desejo descobrir - mas saber dessa precisão nem me espanta porque você acaba me pegando numa meninice na curva de um olhar atento

tenho pensado nas facetas inusitadas de ser feliz. esse silêncio porque a experiência roça o indizível, a simplicidade que não vira crônica ou história de bar, teu cheiro de banho recém tomado. o peso das horas que precedem o embarque, o travesseiro molhado na primeira noite sozinha ao chegar


na imagem, uma das pontes japonesas de Monet 

8 de julho de 2010

Bs As





te procuro, Julio, ouvi dizer que há uma praça com seu nome - encontro Cronópios pichado na avenida de mayo, queria fotografar, mas nem tentei. Trago, mais pegado do que gostaria, o medo das cidades à noite, assaltos, muito tempo sendo alvo fácil, a mocinha só e por mais que agora tenha esta mão que me ampare, ainda me pego desconfiando de figuras paradas nas esquinas, passos apressados às minhas costas.

Talvez devesse te buscar em Paris– mas talvez aqui, entre cafés, os contrastes da arquitetura, as pequenas livrarias, pessoas inquietas e desencantadas pela crise e a inflação, as palavras de ordem nas paredes questionando o sistema, consiga captar algo – um relance do que tenha te instigado antes de cair pro velho mundo

ainda penso nela, Julio, na Maga. Caminhei por Palermo procurando a avenida Jorge Luis Borges para chegar a uma ironia que seria uma das minhas esquinas literárias do coração, quando a Borges leva à praça Cortázar. Vendo as casinhas antigas me pergunto se ela também não teria voltado de Paris, para uma região como aquela. Não teria ela cruzado o atlântico sabendo que de nada adianta fugir ou tentar se encontrar nos braços de um homem incapaz de suportar a si mesmo.

penso nela porque gostaria de sabê-la ali ou talvez no interior da França, numa existência simples como era capaz de ter, guardando sua dor como uma sabedoria secreta sob o riso aberto e seus gestos desengonçados.

na praça, nada me lembra você – o microcentro emocionou mais, especialmente a pichação – parei para um vinho e contemplar rua. Quantos passariam por ali chamando a J.L. Borges e a praça Cortázar ainda por Serrano, quando eu tinha a alegria boba de pensar: então, uma homenagem aos meus queridos. Pura meninice.

voltarei, Cronópio, talvez antes de procurar em Paris, sabendo mais de mim, da cidade, para me surpreender um pouco mais com os sabores, eletrotangos, o calor das pessoas calejadas pelo difícil e desta vez, sem placas mapas e o encantamento deste ineditismo te perceba um pouco mais – para além das fotografias e amplas avenidas portenhas.

20 de junho de 2010

dos brinquedos



Sempre me intrigaram aquelas bonecas russas que guardam pequenas versões de si mesmas até chegar a uma menorzinha, que mantém os mesmos detalhes de pintura das bonecas maiores, mas não contém nenhuma outra dentro.

O que me encanta nas matrioshkas é não saber exatamente qual história dar elas.

As bonecas já me pareceram uma família – poderiam ser várias irmãs, da mais velha à caçula – ou a sucessão de gerações de mulheres ligadas pelo sangue, histórias, nascimentos, memórias e receitas compartilhadas entre cozinhas, quartos e varandas.

A possibilidade mais recente que me apareceu foi de que a matrioshka seria uma única mulher, já que elas mantêm um nível de semelhança entre si que não se vê entre irmãs, filhas, netas e por aí vai. Por isso, a boneca pode ser um indivíduo e cada tamanho corresponderia a uma fase da vida ou a um papel social – com seu tamanho de acordo com a importância que se dá a ele.

Ainda assim, não se pode dizer que a Mamuska – quem geralmente vemos primeiro – dá a luz às que não lhe deixam ser vazia. Tenho pensado muito na pequenina, a que seria a última, guardada e protegida entre ventres, como um segredo. Não seria ela a origem? quem cresce e se protege em diferentes versões de si mesma, uma para cada forma de encarar o mundo?

Disfarçada na robustez de ser capaz de tanta coisa, a matrioshka a abrigar em si tantas mulheres seria apenas uma das formas como a pequenina deseja se mostrar. A versão que torna mais visíveis os detalhes intricados dos traços quase imperceptíveis numa bonequinha.

Gosto de matrioskas porque elas me provocam perguntas e rendem belas metáforas. Talvez seja apenas este tipo de desculpa de que preciso como um novo ponto de partida.